segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Gastrite



A menina louca, completamente louca. Olhava sua foto, pensativo. Ela tinha se ido. Uma vida inteira ao seu lado e parece que foi num piscar de olhos. Nos seus últimos minutos, ela me disse: Venci seu câncer, bebê. E era verdade. Agonizava com esse câncer de estômago fazia anos, aquela história clássica de não ir ao médico e uma alimentação terrível. Mas agora não iria tratar de vez, ele me trazia boas lembranças de você, todas as vezes que passei em filas no hospital, ao receber o resultado dos exames, nos dia que só tomei chá e ficava com fome, você sempre estava lá, com suas mãos com um toque angelical, ao meu lado. Quando estava nos meus piores tempos, ela disse: Ei, bebê, aposto que vou antes de você. O que ficasse, teria que comer no primeiro lugar que jantamos juntos. Um fast food, claro.

Quando fomos jantar pela primeira vez, foi mais um encontro casual, não a beijei, só peguei na sua mão, de leve, as mãos que segurei durante tanto tempo. Mas essa não foi a melhor janta que já tive, uma das mais importantes, claro. A melhor janta que já tive, foi quando nos mudamos pela primeira vez para aquele apartamento do tamanho de um ovo. Antes de nos mudarmos, convidei ela para passear em um parque, sem qualquer objetivo, só ficar com ela até a noite cair, passando a mão nos seus cabelos enquanto apreciávamos tudo ao redor. E então, tive uma ideia rápida, mas muito boa. Peguei na sua mão e perguntei: Vamos nos mudar? Ela virou sua cabeça, sorriu, voltou a posição e disse que sim. Só isso, sim. Pensei por uns 20 minutos e então decidi que estava feito. Não ganhávamos muito e não nos conhecíamos a anos para já poupar. Nos poucos meses que nos amamos, juntamos pouco dinheiro, mas o suficiente para alugar por uns meses um apartamentinho longe da cidade, até arranjarmos um emprego e prosseguir com a vida. Chegamos sábado de manhã e fomos comprar pelo menos uma cama e mais algumas coisas para nosso futuro lar. Não imaginando o preço das coisas, acabamos só levando um colchão mesmo, dormiríamos no chão. Caminhando para casa ela olhou um avental, quadriculado, verde com branco em uma loja. Ela parou e falou: Temos que comprar esse avental. Fiz umas contas e resolvi não jantar no domingo e nem na segunda, então poderia comprar. Um colchão e um avental foram nossas primeiras compras. 

Ficamos dormindo durante a tarde devido a exaustão da viagem, acordamos e conversamos um pouco, apreciamos as paredes brancas e sem nada do quarto até que ela foi preparar a janta enquanto eu fumava um cigarro. Quando entrei na cozinha, vi a cena mais bonita da minha vida. Ela, de avental, descalça, cantarolando enquanto fazia a janta, ficava passando o peito do seu pés atrás de sua canela e exalava felicidade. Apreciei aquilo por longos minutos até que a envolvi por trás e a abracei. E todas as jantas foram assim. Ela sempre usava o avental, não porque precisava ou porque achava bonito ou qualquer outro motivo racional. Ela tinha que usar porque tinha que usar. Até para fazer um chá ela usava o avental. Birra, mas eu adorava ver aquilo. Ela de avental, se aventurando pela cozinha.

Augusto, seu nome. Nosso primeiro e único filho. Criado com tanto carinho e com todas as suas refeições feita com avental. Quando ele foi estudar fora de casa, aos 19 anos, senti um pontadinha no estômago e uma queimação tão forte que nunca senti antes. Era hora de ir ver o médico. Uma gastritezinha, tinha que ir constantemente ao médico, mas óbvio que não fui. Além de ser caro, dava pra aguentar. 

A gastrite, diferente das minhas idas ao médico, era constante. Vivia com uma queimação na barriga. Vivia não, vivi. Passei anos com aquilo na esperança de não doer mais. Minha teimosia ainda ia me matar, e estava começando. Mas não tinha do que reclamar. Não ganhava bem e estava começando a comprar cigarros mais baratos, mas a vida estava no seu ápice. Eu acordava com ela, passava todo o tempo que podia ao seu lado. Nosso vegetarianismo começou nessa época. Passamos quase uma vida sem comer carne. Até hoje não comemos carne. Mas nada disso adiantou, aos 77 anos de idade, 30 deles sem comer carne, fui diagnosticado com câncer. Se a sua mão não estivesse segurando a minha nessa hora, quem teria que comer no fast food, seria você, bebê. Lembrarei para sempre de você vestindo um avental, me fazendo chá para poder amenizar a dor.

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