terça-feira, 1 de abril de 2014

Inverno Astral



Feito fantasmas, bêbados e mendigos caminhavam pelas ruas sujas do verão. O relicário que recebi de você no meu último aniversário balançava de um lado pro outro na aba de meu chapéu.
Gostava daquele relicário, deixava em meu chapéu como se deixa uma cenoura pendurada em uma vara para o burro seguir sempre em frente, eu seguia. Sabia que talvez não chegasse a lugar algum, mas suspeitava que, por ser uma coisa antes sua, o pequeno objeto, secretamente, balançasse na direção em que você se encontrava. Eu seguia.

Em uma calçada especialmente suja, meu relicário encantado acabou por direcionar meu olhar a um aglomerados de bêbados ouvindo, silenciosos, atentos, a um mendigo que aparentava ter mergulhado uma bíblia em absinto e lambido todas as páginas, absorvendo uma profecia deturpada:

- Ouçam bem meus irmãos! Eu, você, seus irmãos, pais e avós, tudo! Tudo e todos! Viemos da grande bunda de Deus. O peido cósmico da criação lançado pelo poderoso cu do infinito! E o fim, irmãos e irmãs, está próximo! Vem chegada a hora que esperávamos! O momento de voltarmos para junto de nosso senhor pela mesma via que viemos e permanecermos junto dele pela eternidade!

E os bêbados que aquilo ouviam explodiram de repente em alegria, festa, bebida. Entornariam o mundo goela a baixo se fosse líquido o bastante, aquela versão peculiar do criacionismo parecia tê-los conquistado facilmente. Mesmo eu, que nunca fui religioso, me sentia levemente impelido a segui-la. Havia bebido um pouco, talvez demais. Aquela profecia do “Cu do Infinito” talvez fosse uma espécie de religião universal para todos os bêbados.

Entretanto uma crença mais forte me chamou quando no balançar do relicário meus passos se direcionaram ao leste, lado oposto ao culto dos bêbados.

Não sei por quantas horas caminhei, se a escuridão não se mantivesse altiva na terra eu acreditaria que foram dias. O relicário parou de balançar. Olhei e estava em frente de um pequeno prédio, um pouco antigo, talvez precisando de uma pintura nova, mas com certa classe. Tipo de lugar que você gostaria de morar, pensei. Havia só uma janela acesa com a cortina levemente aberta, a sombra de uma mulher passa atrás da cortina e um pequeno vislumbre do rosto é captado pela abertura. É mesmo você. Do outro lado a sombra de um homem se aproxima e beija a sua. Meus dentes começam a bater, meu sangue congela, um inverno antártico particular se instaura em minha alma.

Arranco o relicário da aba de meu chapéu e atiro na lata de lixo mais próxima, o som ecoa como o bater de sinos. O casal na janela começa a abrir a cortina, mas tudo que observam é um bêbado de sobretudo e chapéu rumando em direção ao oeste, onde acabaria por se juntar a um culto de bêbados brindando o fim dos tempos.