quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Deneb, Altair e Vega

“Os olhos de uma criança desenham no vento”, ouço as palavras que meu avô um dia recitou, como o verso de um poema, ressuscitarem graças a máquina atemporal das lembranças. Sempre considerei meu avô um poeta, recitando intermitentemente versos dispersos de um grande poema sem início, meio ou fim, talvez o poema de sua vida. “Quando um homem faz algo que realmente ama, ele faz poesia” disse-me ele, “Perca mais tempo correndo atrás de fazer o que ama do que tentando amar o que faz”. Recitava palavras cujo sentido, durante muitos anos, me passaria despercebido, mas que sempre mantive guardadas comigo, protegidas, trancadas a chave em uma das gavetas mais belamente adornadas de minha memória.

Era um homem forte meu avô, lembro-me dele aos 80 anos de idade, arrastando sozinho uma grande tora de madeira a qual, sem a ajuda dele, foram precisos dez homens para puxar. Na época parecia ser um homem implacável, imune a qualquer doença ou dor, além de carregar consigo sempre um tom animado capaz de fazer qualquer homem mais jovem aparentar ser um velho carrancudo.

Um dia de Sol na praia, estava soltando pipa com pelo menos uma dúzia de carretéis emendados, soltando corda e deixando a pipa voar lá longe, onde mal se conseguia vê-la mais, fazendo-a, pensava eu, alcançar intrepidamente as alturas em que passavam os aviões e surpreendendo os pilotos lá no alto. Meu avô se aproximou, tampou a luz do Sol com a mão e apertou os olhos para tentar enxergar a pipa destemida e, com um sorriso calmo no rosto e segurança de suas palavras, recitou:

 - Os olhos de uma criança desenham no vento.

Tinha dez anos naquela época, havia acabado de ganhar minha primeira câmera fotográfica na época, analógica é claro. Penso que câmeras digitais naquele tempo eram exclusividade na NASA ou coisa assim. Ter uma analógica então era ser grande, capaz de capturar toda vida e beleza de um vislumbre em uma memória capaz de ser compartilhada com os outros. Capturei então em um flash aquela pipa ambiciosa que ansiava por dominar os céus junto dos aviões. Perguntavam-me “Por que tirou foto do céu sem nada?” e eu mostrava, sabiamente e orgulhosamente, que era muito mais que nada, ao apontar para um pontinho minúsculo, mas muito significativo, em meio a imensidão azul.

Naquela foto eu via tudo. Pássaros voando no horizonte, o som de seus gorgolejares, as pequenas nuvenzinhas lambendo a cauda de minha pipa. O balançar das ondas, o cheiro do mar, dos manguezais e o sabor de peixes e moluscos. Sol queimando minha pele enquanto pescava sentado nas ondas, jogando os peixes capturados dentro de um pequeno pedaço de mar que prendíamos em um galão. Lembro-me desses dias em minhas noites solitárias. As noites de minha infância jamais foram solitárias, apesar de serem passadas sozinho. Deitava-me na cama e, antes do sono me envolver, sonhava em me lançar no reflexo da lua no mar e nadar até o fundo, quase me afogando, mas colocando os pés nela. Me agachar, pegar uma “pedra” e morder. “Queijo”. Ficava horas a fio pela noite me aventurando por sonhos artificiais enquanto o sono, legítimo, se recusava a dar as caras.

Era uma criança insone, como se minha mente não se silenciasse por horas, impedindo-me de dormir. Passava a primeira hora tentando convencer o sono a me acompanhar e mais uma ou duas horas me distraindo, navegando pelas marés de estrelas. Quebrando a direita no Triângulo de Verão e conhecendo todas as belezas naturais de Andrômeda. Devido a essas noites visitando as estrelas desde a infância acabei por me tornar um adulto insone. Pelas noites sozinho, mesmo que nem sempre solitário, sentado na varanda, tomando emprestados do passado meus olhos de criança e desenhando no vento que se esticavam até as estrelas, um grande oceano, onde poderia mergulhar e nadar até a Lua, me aconchegar sobre o Triângulo de Verão e flertar com Andrômeda enquanto o sono se recusava a chegar.

Acho que aí faço poesia, pois é coisa que se ama.

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