Um pesar atlântico, como se sustentasse não o céu, mas o
oceano sobre os ombros. Como um sonho quente, acolhedor, na madrugada fria
vinham até mim as lembranças do dia em que morri, enquanto continuava, contra
minhas vontades, a pulsar qualquer coisa sem fundamento por minhas veias e
alguma ideia sem sentido por minha mente.
Estava cansado como jamais estive antes. Consegui dormir bem
por uns tempos. Hibernei além das justas oito horas por meia dúzia de noites.
Mas não se pode compensar todo cansaço acumulado de uma vida em menos de uma
semana. Meu coração quicava desesperado pelas paredes de minha caixa torácica,
tentando quebrar as barreiras que o prendiam aqui e escapar desse corpo
arruinado, condenado a desfalecer em cinzas assim que queimar sua última grama
de vontade, o que ocorreria ao menor movimento brusco.
Desejei a morte. O DESCANSO eterno. Não sei se vocês
conhecem a sensação, mas quando se está muito, muito cansado mesmo, seu corpo
passa a ter preguiça de realizar as funções mais básicas, como comer, dormir ou
se matar. Não havia nada que me prendesse a vida, meus “grandes sonhos” há
muito foram superados pela ânsia por descanso, “descanso eterno" então, meu
coração se alegrava só de imaginar coisa tão bela.
Meu plano era: Capengar por uma rua qualquer e me deixar
cair sobre a rua logo na passagem de um caminhão, o qual esmagaria minha cabeça
ou algo assim, me fornecendo o tal descanso ininterrupto pelo qual eu tanto
ansiava. Foi a ideia que mais me entusiasmou por semanas, até que a sorte bateu
em minha porta e vinha um caminhão pela direita em minha direção. Na próxima
pisada em falso eu conquistaria minha liberdade! Mal podia me conter, fui
arrebatado por uma imensa felicidade, não me sentia tão vivo há meses!
Foi esse o momento em que morri.
Ou em que morreu toda minha esperança e qualquer vestígio de
paz que ainda errava pelo meu miocárdio, se há qualquer coisa que posso chamar
de vida em mim além disso, desconheço.
Senti uma mão se agarrando a meu braço esquerdo logo após
minha pisada em falso, a mão me puxou, o caminhão passou. Ouvi uma voz feminina
em um tom que, no momento, só poderia soar para mim como deboche, piada:
- Essa foi por pouco em.
Virei-me para vomitar todos palavrões conhecidos, além de
meia dúzia de recém inventados, quando me deparei com uma belíssima moça de
cachos negros, olhos profundos como a noite e com o sorriso mais anestésico que
já vislumbrara. Engoli as ofensas que enchiam minha boca, senti o amargo da
bile. “Minha desgraça é tanta”, pensei eu, “que sequer consigo me zangar com a
dona de todo meu infortúnio”.
- É, foi por pouco... – Respondi com um tom sorumbático.
- Você não parece muito feliz por continuar vivo. – Observou
ela.
Abri a boca para responder, mas não saiu nada. Ao invés,
tentei dar o sorriso mais simpático que pude, com os olhos fechados para que
ela não olhasse através deles. Em vão, eu era para ela translúcido como
cristal.
- Parece estar muito cansado... E triste. Venha tomar um
café comigo, talvez você se anime um pouco.
Ouço o som do motor de outro caminhão próximo. Seria tarde
demais para me atirar sob ele?
Solto um suspiro cansado, acumulo com ele a energia
necessária para dar uma resposta. A moça me olhava calmamente, com um sorriso
simpático e caráter firme, como se pudesse esperar o dia todo por minha resposta,
até eu me sentir no ímpeto de responde-la. Sorri cansadamente – não era capaz
de fazer de outra forma – e respondi:
- Eu vou aceitar.
Então ela deixou resplandecer um cativante sorriso em sua
face, enquanto deitava levemente a cabeça. Eu começava a perder aos poucos meu
ar cansado e recobrar algum ânimo antigo, esquecido há anos. Ela colocou o
braço em torno do meu, o mesmo que havia segurado evitando minha morte,
provavelmente na expectativa tanto de me guiar quanto de impedir que eu caísse
para morte no menor desvio de olhar, e fomos para uma lanchonete que ela
conhecia.
Na lanchonete escolhemos uma mesa próxima à janela, pois
começava a cair lá fora uma bela e leve garoa de verão. A garçonete se
aproximou da mesa e perguntou com um sorriso político:
- O que vão querer?
A moça, a qual eu ainda não sabia o nome, respondeu:
- Um café expresso puro e um calzone de brócolis com
requeijão em pó.
A garçonete ficou olhando para ela por algum tempo, como se
esperasse o término da piada e, vendo que a moça não a completava, perguntou:
- Requeijão em pó?
- É isso mesmo. – Respondeu a moça, como se não entendesse o
fundamento da pergunta.
- Desculpe moça, mas não temos isso. – Respondeu a
garçonete.
- É claro que tem, eu sempre como aqui. – Disse ela
convencida, deixando a garçonete insegura, mas então completou, para o alívio e
confusão de ambos nós que escutávamos – Vocês chamam de ricota.
A garçonete olhou por mais alguns segundos para ela,
aguardando a graça da piada, mas por fim lançou seu olhar inquiridor sobre mim.
Sem que precisasse verbalizar a pergunta eu já respondi:
- Um cappuccino e um x-salada.
Após a saída da garçonete eu mesmo reforcei a pergunta.
- Requeijão em pó? – Algo que eu sequer imaginava como
poderia funcionar, visto que requeijão é úmido, cremoso, enquanto pó é seco por
definição, sendo a união dos dois uma antítese das mais profanas.
- Você não acha que ricota parece com requeijão em pó? –
Respondeu ela retoricamente. Eu, que decidi não levar o tema adiante, mudei de
assunto.
- Acabo de perceber que ainda não sei seu nome.
- É Caroline, e o seu?
- Diego.
A conversar se prolongou de forma agradável após a pequena
incongruência do “requeijão em pó”, não combinávamos muito, mas isso
estranhamente causou mais uma sensação de curiosidade e deslumbramento que
repúdio. Talvez pudéssemos encontrar no outro qualquer coisa que jamais
encontramos em nós mesmos. Certamente ela transbordava o entusiasmo que eu já
havia esquecido de possuir, enquanto eu era dono de introspecções profundas,
encontradas nas profundezas de onde por muito suportei o peso dos mares.
Saímos da lanchonete e fomos caminhando sem rumo definido.
As vezes conversando, as vezes em silêncio, mas um silêncio confortável,
acolhedor junto da presença do outro. Soube naquele momento que ficaria junto dela
até o fim de meus dias.
Mas ali mesmo meus dias chegaram ao fim.
Em um momento ela estava sorrindo para mim, caminhando
despreocupadamente, e no outro tropeçou em um buraco da calçada, que além de
tudo estava lisa devido a garoa que tinha caído a pouco, vi esse instante em
câmera lenta tantas vezes na memória, mas ali passou rapidamente, como um
pardal se esquivando de seu apanhar, escapando entre seus dedos. Estava cansado
demais para uma reação rápida, por mais que minha mente houvesse relaxado com a
presença dela, meu corpo permanecia acorrentado ao peso do cansaço. Enquanto
ela caía, tentei esticar meu braço o mais rápido que pude, até conseguir
envolver o braço dela antes que caísse por completo no asfalto e, de imediato,
comecei a puxá-la para cima.
Mas era como tentar tirar alguém de uma guilhotina que já
começou a descer.
Um caminhão passou decapitando-a e deixando um corpo acéfalo
em meus braços.
Se eu soubesse como chorar, deixaria o oceano jorrar de meus
olhos. Mas só os vivos choram. E eu morri ali mesmo, junto dela. Morte
insepulta e desesperançada. Meus membros continuam a se mover pelas ruas
mecanicamente, sacos de areia puxados por cordas invisíveis de marionete,
cordas prestes a se arrebentar na esquina seguinte com a passagem do
misericordioso veículo pesado que sepultará esse corpo, há muito sem vida, de
uma vez. Para que finalmente descanse junto de sua alma, perdida há muito.