Era uma menina delicada e amarga. Ácida e doce. Com emoção
derramava sobre as páginas de sua própria história, lágrimas de mel. As páginas
deixavam o mel entrar, como favos de papel feitos por abelhas de tinta. A mesma
tinta que escorria das asas das abelhas ganhava vida à luz da lamparina, quando
os olhos da mocinha cruzavam as páginas aconchegantes de histórias que chegavam
a ser, para ela, mais confortáveis que a própria cama.
Os poucos livros de sua modesta prateleira eram sua pequena
galeria de sonhos e milagres, os melhores amigos que conheceria por um bom
tempo e com quem se refugiaria de qualquer perturbação que ocorresse por sua
casa vazia, sem qualquer outra criança além dela. Os que tem irmãos, sejam mais
novos ou mais velhos, sabem o quão reconfortante pode ser ter alguém com quem
conversar sobre qualquer coisa não compreendida pelos adultos. Quando uma
criança conta um sonho, os adultos fingem que escutam e, mesmo que escutassem de verdade,
jamais entenderiam. Quando uma criança passa muito tempo na triste companhia
dos mais velhos, ela passa a se esquecer de como sonhar, seja durante seu sono,
a noite, seja durante seus dias, olhando para as nuvens em forma de golfinhos
pulando sobre arcos no mar de estrelas. Assim uma casa com dois adultos e uma
criança, em pouco tempo se tornaria uma casa de três adultos, mesmo que os pais
ainda vissem na menina uma criança, assim como as demais pessoas grandes, sem
perceber que a verdadeira diferença entre um adulto e uma criança é que um
deles já sepultou todos seus sonhos.
A menina passaria o resto de seus dias sendo
incapaz de sonhar qualquer coisa que fosse, assim aconteceria se em suas
prateleiras não explodissem de dentro das páginas milhares de letrinhas
luminosas, vagalumes de tinta que juntos formavam palavras, imagens, sonhos
palpáveis. Dentro dos livros a menina tinha irmãos e irmãs, com quem poderia
dividir seus sonhos, pedir conselhos, compartilhar emoções e bons momentos. Ao
fechar das páginas voltava a sua a vida de adulta em corpo de criança, aguardando
pacientemente o momento de se permitir navegar com seu barco de papel,
com seus
cachos ao vento,
pelo mar de histórias que, secretamente, fazia parte de sua família.
Mais tarde a pequena adulta
tornou-se uma jovem adulta e descobriu a terra mística onde poderia alegremente
se perder e se encontrar com seus amigos mais íntimos e sinceros, a biblioteca.
Nela seus cachos de papel despencavam sobre as páginas e se esquecia
de como distinguir onde era parte da história e onde era parte de si mesma,
pois como sabem todos aqueles que já leram com amor, é sempre as duas coisas. Por
lá permanecia o quanto podia, deixava marcas invisíveis de lábios feitas com
seu batom de mel pelas capas dos que mais amava. Então era obrigada a ir para
(deixar para trás?) sua casa, voltando para junto de seus pais.
Assim cresceu a moça, reclusa a
sonhar só com as páginas abertas, incapaz de se lembrar sobre qualquer coisa
que lhe invadisse o sonho noturno, tal como um adulto se esquece sem notar,
e passando os dias guardando memórias sem grande convicção ou entusiasmo,
deixando caírem entre os dedos, visto que, em sua condição de adulta, mais
raramente as coisas lhe causavam o deslumbramento necessário para se sentir no
ímpeto de guardá-las com carinho. Talvez ela se perdesse em uma espécie de Alzheimer
prematuro, do tipo que chega logo após a maioridade, se não fossem os livros.
Por mais que as condições de uma casa onde viviam
três adultos desde pequena tenha cristalizado no cerne da moça uma maturidade
estável, a literatura contagia pelas bordas a dentro da alma trazendo consigo
resquícios dos sonhos de criança. Pode se levar décadas, mas livros são capazes
de rejuvenescer o cerne de um adulto, devolvendo-lhe a capacidade de sonhar e
se deslumbrar com qualquer coisa que não seja séria o bastante para chamar a
atenção dos mais velhos, a dança romântica de dois cisnes sobre a água, carpas
coloridas dançando dentro de uma gota de orvalho que escorre pela folha e pinga
na língua da moça, "Gosto de arco-íris" pensa ela. Dentro de seu
coração descongela um floco de amargura lá presente desde a infância, quando
ocorreram as nevascas de palavras rudes verbalizadas pelos pais, as quais
acabaram por soterrar os sonhos da menina.
Moça, mulher, menina, transita entre as paisagens de mundos distantes e, quase imperceptivelmente, volta a ter vislumbres das imagens que sonha ao se deitar. A neve amarga se derrete e sob ela encontra um sonho doce, morde, recheio escorre e a menina transborda de doçura.
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